Além do Estado republicano para equilibrar minimamente as relações políticas, sociais e econômicas, tal como está estabelecido nos países mais desenvolvidos do mundo, em particular aqueles do oeste europeu, é preciso manter e respeitar a Organização Sindical para defender os e as trabalhadoras. Marcos Verlaine*
As grandes, graves, profundas, amplas e severas crises globais como a que ora vivemos, têm o poder de expor as “vísceras” sociais de qualquer sociedade. A pandemia do coronavírus já está demostrando o que é fundamental para enfrentá-la adequadamente — Estado e organização social, no sentido de organização da população. Sem estes 2 elementos, nenhuma sociedade moderna conseguirá se sobressair. Além de outros, por óbvio, mas a pauta aqui é mais específica. Como explicitado no título.
Há décadas, o Brasil segue receituário político-econômico neoliberal. Interrompido lá na longínqua eleição de 2002, com vitória de Lula e novamente retomado com o impedimento da ex-presidente Dilma Rousseff, em abril de 2016. Com a ascensão de Temer à Presidência da República, o projeto e a ofensiva neoliberais foram reimplementados com força e radicalidade. A eleição de Bolsonaro, em 2018, tem aprofundado os mesmos.
As classes dominantes, por meio do governo de extrema-direita e ultraliberal e da maioria congressual chamada de liberal-conservadora eleitos, em outubro de 2018, aprofundam essa ofensiva e o projeto neoliberais, com características de vingança contra o povo e os trabalhadores.
Basta observar o que vem sendo proposto pelo governo e aprovado pelo Congresso, de abril de 2016 até então — Teto de Gastos (EC 95/16), fim dos ministérios da Previdência e do Trabalho, Terceirização generalizada, Reforma Trabalhista, e seu aprofundamento, com a Lei da “Liberdade Econômica”, e agora com a “Carteira Verde e Amarela”, entre outras mudanças pontuais, até então, nas legislações laboral e previdenciária. Um verdadeiro desmantelamento de direitos e conquistas, que remontam quase 1 século.
Eis que surge a pandemia do Covid-19
Talvez, quem sabe, essa pandemia mude as feições e relações econômicas e sociais no mundo. Uma coisa é certa, o mundo jamais será o mesmo depois dessa pandemia.
Por aqui, num primeiro momento, o governo federal não levou à sério as notícias da profunda e global crise sanitária e econômica vindas da China, Alemanha, Espanha, Itália e outros países europeus, em razão da pandemia do coronavírus. Agora todos já sabem que não era algo banal ou menor ou problema de somenos importância. A pandemia bote às portas do País e do povo brasileiro, cuja expressiva maioria é desassistida e desprotegida de quaisquer políticas públicas de emprego, renda e infraestrutura. Além do sucateamento do SUS (Sistema Único de Saúde), que em razão disso, não terá condições de cuidar da imensa maioria dos acometidos pela pandemia, quando essa chegar ao seu auge.
A pandemia do coronavírus está trazendo — além de mortes em escala geométrica e muitas preocupações de toda ordem, que parece, estão só começando — outras novidades. Uma dessas é a tênue mudança na orientação político-econômica do governo. De orientação econômica ultraliberal para pitadas de keynesianismo, em razão da severa pressão social que está sofrendo. Aquela, da “Teoria Anticíclica”, do economista britânico John Maynard Keynes (1883-1946). Mais adiante explicamos sua fundamentação.
Desinvestimento
De 2016 até aqui, o que se vê é o desinvestimento de ambos os governos — Temer e Bolsonaro — no Estado brasileiro, que mal provê o mínimo ou básico aceitável para o bem-estar social da maioria da população. Agora, com a crise estão vendo ou percebendo (governo e empresários), que em períodos de crise como o que ora vivemos, que as salvaguardas ou proteções, o porto seguro, é o Estado e suas políticas anticíclicas. Não o mercado e suas políticas de austeridade fiscal ou “austericidas”.
Nas crises profundas, em particular, as que abalam a economia e o poder de compra das famílias, o mercado não se autorregula coisa nenhuma, porque não recebe “irrigação” suficiente para se manter e prosseguir operando. Precisa da “mão” do Estado para sobreviver. Justo o Estado tão satanizado, demonizado e vilipendiado pelo mercado. Vejam o exemplo das empresas aéreas, todas privadas, contempladas por MP para ajudar a superar a crise. E há muitos outros exemplos, como o Proer (Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional), implementado em 1995, no 1º mandato de FHC, que salvou o sistema financeiro nacional da quebradeira geral.
Não podemos esquecer também da maior crise do sistema financeiro global em 8 décadas teve início há 12 anos. Olhando em retrospectiva, depois de o desastre já consumado, é possível ver que o mercado já dava sinais de fragilidade algum tempo antes de 2008. Mas foi quando o banco de investimentos Lehman Brothers decretou falência, na madrugada de 15 de setembro, que o mundo começou a perceber o tamanho do problema que se aproximava.
A crise, que teve origem no setor imobiliário, de início, deixou 20 milhões de pessoas sem casa nos EEUU. Mas suas consequências, amplificadas pelo mercado financeiro, foram ainda maiores. Em todo o mundo, centenas de milhões de pessoas perderam o emprego nos anos seguintes.
A falência de algumas das maiores companhias do mundo, como as montadoras General Motors e Crysler, a seguradora AIG e o banco de investimentos Bear Stearns, foi evitada com dinheiro do contribuinte (Estado). O plano de socorro do governo de George W. Bush (Republicano) chegou a R$ 2,6 trilhões, na época. Lembrem-se, não há nada mais neoliberal que o Partido Republicano e o sistema financeiro (bancos), nos EEUU.
Keynesianismo: entenda
A escola Keynesiana ou Keynesianismo é a teoria econômica consolidada pelo economista britânico John Maynard Keynes em seu livro seminal “Teoria geral do emprego, do juro e da moeda”, que consiste numa organização político-econômica, oposta às concepções liberais, fundamentada na afirmação do Estado como agente indispensável de controle da economia, com objetivo de conduzir a um sistema de pleno emprego. Tais teorias tiveram enorme influência na renovação das teorias clássicas e na reformulação da política de livre mercado.
A escola keynesiana se fundamenta no princípio de que o ciclo econômico não é autorregulado como defendem os neoclássicos (neoliberais), uma vez que é determinado por suposto “espírito animal” dos empresários, do mercado. É por esse motivo que Keynes defende a intervenção do Estado na economia. Não para suplantar o mercado, mas para fortalecer uma posição de regulação ou controle, com propósito de estabelecer alguma simetria. Elementos que o neoliberalismo abomina.
Keynes, para suplantar depressões econômicas, chegou mesmo a propor ao Estado em crise, caso fosse necessário, “construir pirâmides” ou “cavar buracos e tapá-los novamente”, a fim de suscitar uma demanda adicional para vencer a crise mantendo certa mão de obra ocupada e remunerada.
Sindicalismo
Além do Estado republicano para equilibrar minimamente as relações políticas, sociais e econômicas, tal como está estabelecido nos países mais desenvolvidos do mundo, em particular aqueles do oeste europeu, é preciso manter e respeitar a Organização Sindical para defender os direitos e conquistas dos e das trabalhadoras. A urgência em mitigar a crise não pode servir de pretexto para excluir os sindicatos, por meio das centrais, da formulação das políticas para superação dessa profunda instabilidade.
No Brasil, nem temos integralmente o Estado republicano, em processo de desmantelamento por 2 sucessivos governos, nem temos uma Organização Sindical robusta e livre, com legislação protetiva para os trabalhadores, incluindo aí a própria estrutura sindical.
A organização e a estrutura sindicais foram bastante enfraquecidas pela Reforma Trabalhista, por meio da asfixia financeira, de um lado, e do enfraquecimento da atuação sindical, de outro. A antiga lei laboral (CLT) foi invertida — outrora protetora da mão de obra, para agora, com o advento da Lei 13.467/17 —, protetora do patrão, das forças do mercado e do capital.
Neste momento de crise profunda se faz necessário sindicatos fortes, atuantes e respeitados pelos governos (nos 3 níveis), mercado e patrões. E não o contrário, como querem empresários e governo. É o sindicato, como substituto negocial, que vai representar, nas negociações com as empresas e governos, as demandas dos trabalhadores — do campo, das cidades e dos setores públicos e provados. Não há sentido em propor, sobretudo em legislação provisória, que os sindicatos estejam fora dessas negociações e processos.
A não ser que seja para — em negociações absolutamente desequilibradas, sim, porque é isso que serão, “negociações” desequilibradas —, propor e impor acordos absolutamente lesivos à classe trabalhadora. Negociação individual, sem o sindicato, não é negociação, é imposição do ônus da crise para o/a assalariado/a, o/a trabalhador/a.
A lógica da precarização permanece
Esta proposta do governo segue a mesma lógica da prevalência do “negociado sobre o legislado”. A antiga CLT, implicitamente, já previa esse mecanismo para ampliar direitos por meio das convenções e acordos coletivos. Isto é, direitos acima da CLT nunca foram negados, pelo contrário, eram sempre acolhidos pela CLT.
Os patrões explicitaram a nova regra, na Reforma Trabalhista, não para fortalecer o processo negocial, mas para enfraquecê-lo para retirar direitos. Do contrário, não era preciso explicita-lo, como chamou à atenção, o Ministério Público do Trabalho, no contexto do debate da “reforma” no Congresso Nacional.
Redução de salário e jornada
Por fim, mas não menos importante, propor reduzir salário e jornada, indistintamente, em 50% para todos, é anti-isonômico, além de o percentual ser excessivamente alto. Situações distintas merecem tratamentos distintos.
Reduzir a metade do vencimento é quebrar o poder de compra das famílias e levá-las à falência. Cada caso se constitui num caso específico. Por isso, é imprescindível a participação do sindicato nesse processo, para que a negociação se dê em bases simétricas. Só o sindicato pode fazer essa negociação, sem prejuízos para os/as trabalhadoras.
Isso, porque será preciso também levar em consideração uma série de condicionantes. Algumas dessas são específicas ou subjetivas: se o/a trabalhador/a sustenta família, mulher, marido e filhos, entre outros parentes; se é solteiro/a; se tem filhos dependentes ou doentes crônicos incapazes de se sustentar. Enfim, diante de um conjunto de assimetrias inevitáveis entre os/as trabalhadoras, a negociação sem o sindicato terá qualquer outro adjetivo, menos o seu significado substantivo original.
Homologação no sindicato
Finalmente, será preciso aproveitar essa crise para resgatar o poder negocial e de representação sindical do/a trabalhador/a, para alterar essa grave lacuna aberta pela Reforma Trabalhista que é a desobrigação da homologação no sindicato. Com o fim dessa prerrogativa sindical é fato que os trabalhadores estão sendo continuamente prejudicados e lesados. Assim, é preciso resgatar essa prerrogativa sindical alterada pela “reforma”. A hora é agora!
(*) Jornalista, analista político e assessor parlamentar do Diap
Fonte: Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar
Publicado em 15/04/2020 às 09:40